13 julho 2007

Um Velho Novo Homem


Sinto-me hoje como dentro de um casulo. Fico recolhendo meu corpo, protegendo-me do frio. Ao mesmo tempo em que sei que ficar presa vai me deixar aquecida, sinto que preciso logo virar borboleta.
Quem me assiste hoje dentro desse alvéolo talvez não tenha idéia do meu estado há três semanas. Apesar da imagem ser um pouco melancólica, quem está ao lado vê só mais alguém com seu jeito tímido.
Não foi à toa que parei aqui com essas palavras. Eu dirigia o meu dicionário e acabei estacionando minhas letras coloridas em uma calçada sem cor. Levei multa, o dicionário foi guinchado e hoje só me resta a caligrafia mais triste e lenta que poderia existir. Vou a pé.
Ao mesmo tempo em que me sinto feliz por tudo nessas três semanas ter dado certo, sinto que falta um pedaço de mim.
Naquela segunda-feira fria, nublada por quase todo o dia e chuvosa à noite, eu não imaginava que minha vida estaria para mudar quase que completamente. Assim, bruscamente, sem pedir para que nada disso ocorresse.
Se torna tão difícil comentar o episódio que, ao mesmo tempo em que quero contar, quero também não lembrar.
Debaixo desse frio que me assola agora, vejo que não posso mais ter medo de nada. E parece que realmente não tenho.
Acredito que agora, depois de tanta dor e esforço, nada vai mais me atingir.
Recebi o telefonema do meu pai no meio da tarde. Ele perguntava se estava tudo bem, apresentou a voz rouca e disse que precisava de um medicamento para amenizar a sua gripe.
Ao fim daquela ligação eu não imaginava que tantos dias infernais estavam por vir.
No fim da tarde lá estava ele, em casa, agasalhado e preparando o seu último jantar. Uma sopa reforçada, cheia de tudo aquilo que deveria livrá-lo da gripe imediatamente. O último jantar de um homem.
Coloquei em volta do seu pescoço um cachecol para protegê-lo ainda mais do frio. Ficou uma imagem engraçada.
Meu pai, homem alto, forte, quase 100 kilos, de atitudes um tanto grotescas, vestia agora um delicado cachecol. Ele estava tão vulnerável que se permitiu usar o que em qualquer outro dia jamais usaria. Realmente, cachecóis não ornavam para ele.
- “E agora?” perguntei.
- “E agora vamos ver tv”.
Durante muito tempo eu odiei a televisão e tudo o que havia dentro dela. Isso se deveu ao meu pai, que “vivia” futebol e tudo relacionado ao esporte. Não detesto esportes, apesar de ser um tanto sedentária. Mas era de manhã, de tarde, à noite, em feriados e fins de semana, sempre lá estava meu pai atrás das notícias do futebol. E como a voz de Galvão não é lá tão agradável, deu no que deu.
Mas, por fim, tive que acabar me entendendo com a televisão. O jornalismo e tudo ligado a ele me exigiam ficar atenta aos noticiários e eu agora precisava da televisão, assim como da internet, do rádio, dos livros, jornais e revistas.
Mas não foi a tv que matou meu pai. Aliás, ninguém matou meu pai. Ele não morreu. Depois da sopa ele foi dormir e eu continuei a ver televisão. Quem diria?
Não durou muito tempo a distração. O dia tinha sido puxado e eu, em um raro momento, logo dormi.
Dormi, dormi, dormi até ser interrompida pela tosse incessante do meu pai. Minha mãe estava impaciente. Assim como eu, ela também precisava acordar cedo e logo sua voz se misturou à tosse do meu pai.
Não foi por maldade, mas meu desejo era de que eles se calassem logo, de uma vez, para que eu pudesse retomar meus sonhos.
Sonhos. Tantos sonhos e fui realizar logo o pior pesadelo.
Meu pai não estava bem e essa agonia durou um dia e meio, quando, na quarta-feira à tarde, finalmente, resolvemos ir todos juntos ao médico.
A agonia, por quase 5 minutos, nos deixou. Depois, largou seu principado e voltou à nossa casa para reinar.
Hoje, quase 30 dias depois, meu pai planeja o jantar. O primeiro jantar de um velho novo homem.

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

fantástico, simplesmente fantástico...

13/07/2007, 10:42  
Anonymous Anônimo said...

Que coisa mais linda que vc escreveu aí. Tem muito sentimento nisso ai, eim.
Muito bom msmo.

16/07/2007, 15:07  
Anonymous Anônimo said...

coisa linda. coisa linda, silvia. coisa linda.

17/07/2007, 03:00  
Anonymous Anônimo said...

Sabe quando alguém conta uma história impressionante e alguém diz, "Nossa, isso me dá até arrepios!" Sempre achei frescura, pq não via motivos para a pessoa se arrepiar só de ouvir alguém contar algo.. Mas não sei, não sei porque, se pela situação, se pela história ou se pelo orgulho de ver minha amiga escrevendo tão bem não consigo desarrepiar..Nem costumo ler o profile da pessoa qdo o texto é extenso e sem definições características. Mas agora, a 12:37, com sono mais ainda trabalhando e tendo mil coisas pra fazer amanhã, parei pra ler pra ler e como poucas vezes acontece na minha vida, me emocionei.Parabéns!!

19/07/2007, 00:39  
Blogger Unknown said...

Não sei o que se passou, mas se as palavras te serviram como um remédio, parabéns. Você encontrou a fórmula perfeita para a cura. Um beijo carinhoso de uma amiga/colega, seja lá o que vc me considere, que mesmo longe sempre lembra de vc.

21/07/2007, 19:13  

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