10 agosto 2006

Variglog

Na página “dinheiro”, leio a proposta para a compra da querida e falida Varig, que tanto sobrevoou o céu onde estava. Aguardo às 14h para uma entrevista.
Meus olhos astigmáticos percorrem a entrevista com Marco Antonio Audi (pelo sobrenome, você acha que ele é rico? Não, é podre!) e ouço dois irmãos sujismundos e “boca suja” (no sentido moral e literal) discutindo quem iria “cuidar” do carro da “tia”, aliás – “ela não vai sair do carro não?”.
A mãe vasculha o lixo do condomínio do outro lado da rua. De vez em quando os dois aproximavam do pára-brisas, espiando se “a tia” ia sair ou não. "Tá loco, num sai nunca!".
Um deles correu apressado pra mãe. Voltou com uma embalagem de creme dental (a caixa, não o tubo). Tinha uma abertura para visualizar o produto, antes de ter sido consumido: “50% grátis”. "Legal!".
O irmão levantou e esbravejou: “É mãe, você só dá as coisa pro John.”
John, como a pronúncia do nome de John Kennedy. Um menor brasileiro sem pai e com fome com nome do ex-presidente dos EUA, de cantor dos Beatles, de ator americano de filmes de faroeste... Mas o John favelado de Curitiba voltou trazendo também dois iogurtes desnatados (é pra manter a forma) que a mãe encontrara no fundo de um dos sacos plásticos, entre os caixotes e a carroça, e dividiu a sobremesa com o irmão.
Enquanto John voltou para ajudar a mãe a separar o lixo, o outro ficou ali, estático, em frente a uma vitrine de ursos de pelúcia, bonecos, porta-retratos e outras coisas que provavelmente nunca compraria.
Duas senhoras negras com suas sacolas olhavam a vitrine e procuravam a porta de entrada. “Ela foi almoçar. Eu disse que ia cuidar. Ela já volta. Olha lá! Olha ela vindo lá. Alá...” falava e corria em direção a mulher. O irmão de John estava animado.
Como recompensa pelos bons olhos do garoto, duas maçãs.
Vi quando ele deu a primeira mordida. O corpinho desnutrido não dava força para arrancar um grande pedaço e mastigar com ferocidade. Escondeu a outra dentro da calça quando seu irmão chegou.
Quando voltei da entrevista, eles não estavam mais lá. Nada havia além de uma multa de R$7,50 por estacionar sem Estar.
Olhei os copos de iogurte vazios deixados no beiral da vitrine. Em um deles, as digitais de dedos sujos. Nos dois, a data de validade há duas semanas vencida.
E a VarigLog comprou a Varig por 52,4 milhões de reais. Oito mil funcionários foram demitidos.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Digno de qualquer bom jornal brasileiro. Gostei.

17/08/2006, 08:31  

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