10 junho 2006

Esteira rolante

Abri a porta e saí rumo à calçada. Caminhei até uma amiga, que mora na mesma quadra, para lhe emprestar um livro que me pedira há semanas. Encontrei o portão trancado decidi continuar a andar. Daria a volta no quarteirão e regressaria para casa.
Mas era início de Copa, a televisão transmitia Suécia e Trinidad Tobago, eu acabara de terminar um namoro onde já não havia nenhuma perspectiva, estava sem companhia e por fim, não tinha uma ponta de vontade de ficar em casa.
Segui por mais duas quadras. Eu só pensava ‘nele’ e os caminhos que eu fazia eram em direção a sua casa. Não desgrudava do telefone. Até pro banheiro eu levava o celular. A cada 60” olhava no menu de “chamadas não atendidas”.
Já em frente ao mercado e pensando se entrava ou não entrava, entrei. Fiquei observando as pessoas subirem na esteira rolante sendo levadas para as compras. Pedi 500ml de água de côco e quando cheguei na metade do copo não agüentava mais beber. Aquela fora a refeição mais saudável que eu tivera nas últimas duas semanas. Quase todos os dias me alimentava de uísque, cigarro e morangos. E pensava ‘nele’.
Vi uma mulher magra como uma formiga de regime usando óculos escuros subir a esteira e me diverti terrivelmente com aquilo. Me lembro bem de ter soltado uma gargalhada e o rapaz do quiosque ao lado ficar olhando incompreensível pra mim. Com uma visão privilegiada dos demais, a via caminhando brusca e desengonçada como um andróide demente. Aquelas pernas retas e sem contorno daquele corpo esgalgado me proporcionaram um ataque delicioso de riso e aquilo me inspirou intimamente.
Terminei minha água de côco, que agora pesava no meu estômago, e subi ao mercado. Decidira que iria registrar aquilo prontamente. Eu precisava de uma caneta.
Estava tudo planejado na minha mente: Iria comprar a caneta e me sentar na escada que dá vista pra esteira e descreveria no verso do livro tudo o que parecesse apropriado.
Disparei num ritmo empolgante, como quem está para perder o trem das onze para Jaçanã onde mora a noiva que não se vê a três meses. Fui direto para a seção de material escolar. Hoje penso que aquela seção deveria ser denominada “materiais para elaboração de textos inúteis, imprevisíveis e traumatizantes.”
Escolhi a mais execrável e ordinária das canetas. Eu queria me convencer de que era quase tão boa quanto Nelson Rodrigues, mesmo com uma caneta medíocre.
Lembrei-me naquele momento que eu precisava de um xampu, coisa que antigamente era artigo de luxo e hoje é uma extraordinária – ou seria ordinária - necessidade. Eu que sempre abominei mulheres neuróticas com a beleza, comprei o mais caro. Decidi mudar meu estilo quanto aos cuidados estéticos. Talvez fosse ‘ele’ que me motivasse a melhorar.
Indo para o caixa, passei na seção de queijos. Rasdaam. Um queijo uruguaio levemente adocicado que me tentava profundamente a devorá-lo ali mesmo, como um tigre faminto. Como uma digna mineira, não poderia decepcionar o meu desejo e abanquei aquele triângulo que me fazia rememorar os moldes da bandeira da minha terra. Mas enfim, eu ia abocanhar o queijo pensando ‘nele’.
Aproveitei e apanhei um esmalte cor-de-rosa na estante de cosméticos. Eu não era acostumada a pintar as unhas, mas como decidira mudar, seria então radicalmente – ao meu ver.
Passava as compras no caixa e ansiava para escrever. 10,74. Depois da água de côco, me restara 12 reais no bolso e agora me sobrava 1,26 para passar todo aquele final de semana que tinha tudo para ser longo e melancólico. Meus planos de ir ao cinema mais tarde foram por água abaixo.
Mas ergui a cabeça, agradecia atendente que tinha o rosto cheio de espinhas e uma ferida no canto esquerdo do lábio. Me senti bem por ver ela daquele jeito – afinal, haviam pessoas mais feias do que eu - e desci pela mesma esteira que mais tarde ‘ele’ passaria.
Sentei-me na escada e encostei as duas sacolas nos pés. Prostrei-me para a multidão que me ignorava completamente.
Desembrulhei a caneta e abri as páginas do livro copiado em folhas de sulfite. Olhava atentamente esperando alguém que me inspirasse novamente, depois da pequena andróide demente.
Vi uma senhora que tentava subir pela esteira com uma cadeira de rodas automática do mercado e pedia para a filha lhe tirar uma foto. Abri o queijo e dei uma generosa abocanhada nele.
‘O’ vi despontando do alto da esteira. Parecia suado e feliz. Mais atrás alguém lhe batia nos ombros: “Segure pra mim” eu li nos lábios dela enquanto ‘lhe’ passava algumas sacolas. Prendeu os cabelos com um elástico tirado de meia-calça, deu-‘lhe’ um beijo na boca e pegou as sacolas de volta.
‘Ele’ e ela. Eu e a minha caneta vagabunda. Provavelmente pálida, me levantei para regressar a casa. No caminho, parei de frente prum latão de lixo, ergui as duas sacolas em cima dele e observei-as por exatos cinco segundos e as lancei como quem lança um peixe vivo de volta ao mar. No bar em frente, comprei uma garrafa de vinho.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Caneta, queijo, esmalte e água de coco. Humm. Vou pensar alguma coisa para fazer com tudo isto.

12/06/2006, 09:49  

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