31 maio 2006

No sinaleiro

Ele acabou de tirar sua carteira de motorista. Buzina e pára no sinaleiro que acabou de ficar vermelho e entreabre a janela. Do seu lado, um carro com uma mulher ao volante. Ele a cumprimenta.
- Oi. Tudo bem?
E ela com toda a delicadeza que já é própria dela responde meio ressabiada.
- Oi.
- Olha, eu não queria ser chato e nem te incomodar mas é que eu acabei de sair da auto-escola e sabe... Nossa, como você é bonita!
- Brigada! – Toda acanhada, mas ainda ressabiada.
- É. Você é muito linda, não precisa agradecer. Eu só digo a verdade. Qual o seu nome? Aliás, o meu é Fábio, eu sou um cabeça dura mesmo, nem me apresentei. Peraí.
Desliga o carro, puxa o freio de mão e termina de abrir a janela. Seu sobretudo marrom enrosca no banco que está sentado e ele não consegue sair janela afora. Vai tirando o casaco...
- Peraí. Só um pouquinho. É que eu to com uma (fazendo força com o abdômen e meio que rangendo os dentes pra falar) dificuldade aqui. Merda de casaco! Ah, me desculpa. Você nem me conhece e eu aqui falando palavrão já. Eu não sou assim sabe, mas é que às vezes eu me irrito com certas coisas.
Termina de tirar o casaco, tira as luvas de lã que sua avó costurou e as guarda no porta-luvas.
- Olha que engraçado. Pela primeira vez eu guardei minhas luvas no porta-luvas. Não é engraçado? Se eu contar ninguém acredita. Aposto que você nunca guardou luvas no porta-luvas. Porque será que o porta-luvas tem esse nome se ninguém o usa para guardar luvas né?
Coloca os dois joelhos no banco inclinando a cabeça e os braços pra fora. Coloca metade do braço direito dentro do carro da moça e a cumprimenta.
- Então, eu sou o Fábio. E você é...?
- Lívia. (Rindo não se sabe se dele ou pra ele.)
- Lívia. Prazer Lívia. Seus olhos são muito bonitos. Olha que contraste esse verde com sua pele branquinha. Não me entenda mal não, eu não tô te cantando, é que eu gosto de elogiar uma mulher bonita, e você é uma. Deixa eu me despendurar do seu carro, senão você vai pensar que eu sou um abusado... (Rindo)
- O que você quer então?
- Não, é que eu não sou disso mas, é que eu tirei carteira há pouco tempo e eu to com... (Vrummmm. Só o vulto de um carro passando) Olha! Você viu aquele carro? Que absurdo. Tem crianças ali na calçada, imagina! Nessa velocidade ele poderia atropelar e matar a criancinha na hora. Pra quê correr desse jeito aqui? Depois acontece um acidente e causa o maior desespero pro pai e pra mãe de um cara desse. Você não tem jeito de que corre, Lívia.
- Não passo de 70.
- Eu também não. Por isso que eu não corro, não corro mesmo. Sabe, uma vez minha irmã atropelou um cara quando a gente ia pra praia. Eu sempre vou, meus pais moram lá em Pontal, conhece?
- Aham.
- Então, eu não vou tomar muito seu tempo. Vou falar meio rápido pra não te atrasar. Só vou te contar porque é bom contar para as pessoas ficarem mais atentas sabe?
- Uhum.
- Então, a gente tava descendo a Serra e bem onde tem uma trincheira me atravessa um cara cambaleando de bêbado. Aí minha irmã atropelou, não tinha como escapar. Era de noite. Nem dava pra enxergar o cara direito.
- Nossa. E ele morreu?
- Morreu na hora. Você acha que a 90 kilômetros por hora alguém sobrevive? E a latinha de cerveja dele foi parar dentro do nosso carro.
- Sério? E tua irmã?
- Ela foi arrastando o carro pelo muro que tem ali sabe, que separa uma pista da outra. Mas ela não tinha culpa. Ela não podia fazer nada. Ela não é culpada.
- Claro que não. Nada a ver.
- Pois é, é complicado. Mas fazer o quê? Acontece. Por isso que eu não corro, ainda mais dentro da cidade.
Entrosando no assunto, ela lança uma contra-opinião.
- É, mas nesse caso não foi culpa da velocidade, foi distração do pedestre. Tem uma trincheira pro cara atravessar. Porquê ele teve que passar por baixo?
- É. Mas sei lá. Em baixa velocidade é mais seguro.
- É, depende. Mas o que você quer?
O sinal está amarelando. Lívia acelera o carro mas o sinal fica vermelho de novo. Ela espera.
- Como assim depende? Você não concorda que quem anda em baixa velocidade corre menos riscos de se acidentar?
- É. Concordo. Concordo. (Brusca) Eu disse sem pensar.
- Não. Se você não concorda pode dizer, eu quero saber sua opinião.
- Ah, é que eu acho que andar muito devagar pode prejudicar o trânsito. Pode atrapalhar quem está com pressa. Quem tem alguma urgência. Tem que seguir o fluxo.
- Ah, é verdade! É, eu concordo mesmo. Mas você não disse que anda a 60?
- Eu disse que não passo de 70. Mas é na cidade.
- Então você pega um monte de multas por aí, porque o limite é 60 né. (Rindo e achando que isso era muito engraçado pra ela também.)
- Se eu pego multa o problema é meu. (Estupefata) Mas eu não pego. Eu sei onde ficam os radares e quando passo por eles eu reduzo a velocidade.
- Ah tá, tá bom. Não precisa ficar nervosa.
- Não tô nervosa. É que eu quero ir embora.
- Você não quer ir beber alguma coisa? Tomar um milk-shake? Eu pago. Quer dizer, deixa eu ver aqui.
Começa a procurar a carteira dentro da mochila desesperado, vai tirando guarda-chuva, máquina fotográfica, um papel de presente, uma calculadora e é interrompido.
- Não. Eu não posso. Marquei de encontrar com meu namorado.
Fábio, ainda na mochila, tira um chiclete e um bombom.
- Olha, eu tenho um bombom, você não quer?
- Não, brigada. Pode ficar.
- Não, é pra você. Toma. Não ta envenenado, mas pode estar com a validade vencida. (E joga o bombom no carro de Lívia)
- Ok. Obrigada.
- Então tá. Se você tem que ir se encontrar com o namorado tudo bem. Foi muito bom conversar com você. Você é muito simpática, viu?
- Obrigada. (Sorri)
- Então até mais.
- Até. (E vai acelerando o carro pois o sinal está verde)
Fábio coloca o casaco de volta, põe o cinto de segurança e liga o carro. Lívia dá ré e volta para o lado do carro de Fábio.
- Mas você me parou por quê? Você disse que tinha acabado de tirar carteira e tal.
- Ah, eu só queria dizer que você tava com o carro em cima da faixa de pedestre.