12 março 2006

Enquanto ele não vem



No sexto andar do prédio onde moro, lendo o livro de Ricardo Kotsho, “a prática da reportagem”, ouvi um movimento na rua que fica em frente à janela do meu quarto.
Pensei logo no meu pai, que tinha saído já fazia uma hora para buscar um remédio na farmácia e ainda não tinha voltado.
Abri a cortina e avistei um casal com suas cabeças erguidas olhando praticamente para o céu, enquanto a mulher apontava pra cima, falando ininterruptamente.
Vi quatro pessoas num semi-círculo. Uma senhora segurando um cachorro pela corrente, outro com um skate no chão, outra com uma bolsa a tira-colo e de braços cruzados, e um homem que ajeitava seus óculos sem parar, como se tivesse um tique nervoso. Todos olhando para cima e para baixo, como o correr daquela canoa vicking dos parques de diversão.
Novamente retornei o olhar ao casal. E o homem apontava como se argumentasse o que a mulher dizia antes. As pessoas se aproximavam uma das outras, como se quisessem achar uma explicação para o ocorrido.
Não sei o que me chamava mais a atenção. Se era o fato do meu pai estar demorando e a possibilidade de ser ele o centro das atenções ou se era o fato de terem pessoas estranhas conversando em Curitiba, o quê pra mim parece mais raro do que um pai de quase 60 anos flutuando no céu.
Tentei olhar mais além daquelas pessoas, mas um prédio ofuscava minha visão, no centro da rua, onde provavelmente estava a atenção do que teria ocorrido.
Já eram quase 3 horas da tarde, mas eu ainda estava de pijama e queria evitar de descer. Mas a curiosidade foi maior e eu não me contive. Tive que verificar o que ocorria.
Saindo do elevador, perguntei ao porteiro: “O senhor sabe o que está acontecendo aí na Dom Pedro?
Ele respondeu já curioso: “Não tô sabendo de nada.”
Segui caminho até o local. A rua que fica de frente para a janela do meu quarto, é a rua lateral da frente do meu prédio. Portanto, eu tinha que dobrar a esquina, andar até a metade da quadra para poder entender o que estava acontecendo.
Distraída, eu só conseguia olhar para o lado direito da rua.
Cheguei até um grupo de pessoas que conversavam rindo. Pensei logo que “tragédia não deveria ser”.
Perguntei: “Desculpa, o que está acontecendo? Vejo movimentação, mas... nenhum fato”.
Ninguém me respondeu nada. Apenas um rapaz que estava apoiado na sua bicicleta e passeava pela região, apontou pra cima, igual o casal que avistei do meu quarto.
Virei o rosto e em seguida, todo o corpo. Vi caindo de um prédio de 8 andares, uma faixa na vertical que dizia: Karina, você é o amor da minha vida. Casa comigo?
Na portaria do prédio fui informada. “Karina está de férias em Barcelona. Só volta daqui uns 20 dias.”

11 março 2006

A ponte





Três vidas. Dois caminhos. Uma ponte.
Antes, era medo. Depois, virou prazer.
O prazer saiu barato. Caro ficou o fim.
O fim foi como um sonho imaginado antes.
E o antes parecia não ter fim.

O primeiro estranhou. Fez cara de quem não gostou.
Descia pro mesmo lado. Fazia o mesmo caminho.
Acreditou em uma materialização.
Cruzava a mesma ponte e se desviava do que não parecia certo.
Chegava na hora certa e se despedia com presteza.

O segundo gostou. Fez cara de quem entendeu.
Duvidou da minha palavra. Acreditou numa aproximação.
Contaminou-se com minhas inverdades.
Sofreu por ter que se esconder.
Trouxe à tona o que não queria ver.
Caiu nas garras de um diferente ser.

O terceiro ficou instável. Imutável. E Constante.
Riu. Chorou. Não obstante, se entregou.
Caminhou até o meio. Parou.
Virou-se e percorreu o caminho de volta, até se acostumar com a paisagem.
O mais belo se aproximou e, o seu cheiro, ficou.

O segundo correu, correu e voltou ao mesmo lugar.
O primeiro tornou-se o segundo. E o segundo, o primeiro.
Na lista só cabem 2 nomes. O fim não tem preço.
E os dois ficaram na mesma lista, e nada mudará isso.
Nem o perigo. Nem o medo. Nem a ponte.


Reflexo

Ela chega no refeitório e olha pra todos os lados. Não procura ninguém, mas por algum motivo ela parece querer ser vista.
Ao seu lado a figura mais desprezível para a companhia de qualquer mulher com o mínimo de delicadeza; um desses moleques que fica se masturbando no banheiro da avó em suas visitas de domingo, que carrega na mochila uma playboy do ano passado e na carteira, um preservativo que perdeu a validade há quase dois anos.
Os dois, em pé, se acomodam em uma mesa. Ela posiciona sua bolsa de estudante em cima da mesa e se põe a olhar a multidão novamente. Ela o abraça e imediatamente ele se afasta, como se tivesse enojado da companhia que tem.
Embalagens de chicletes e balas derretidas caem do bolso direito da bermuda dele. Ele se abaixa para pegar.
Ela se mantém assente bem próximo dele. Ele se desvia de um lado para o outro como se estivesse fugindo de um tiroteio ao estilo Matrix, onde cada olhar dela é uma bala, e se senta na cadeira que está ao lado.
Ela, delicadamente saca seu cigarro que já está aceso e escondido atrás do seu corpo esgalgado e sem contorno e traga, inclinando a cabeça para cima e direciona os olhos para frente, mas não em uma altura em que possa vê-lo.
Enquanto leva com a mão esquerda o cigarro até a boca, a mão direita está afagando distantemente o boné dele, como se fosse o mais próximo que os dois pudessem ficar.
Pelo reflexo do vidro do refeitório se vê inquietamente os olhos dele dando reviravoltas e nitidamente se sente seu suspiro intolerável perante aquela cena. Ela não percebe nada porque ele virou metade do seu corpo de frente para o
vidro, onde o rosto dela não pode avistá-lo.
Então ele pronuncia uma palavra.
De longe se lê os lábios dele que se abriram preguiçosamente – “vamos”. Não foi em tom questionável, mas de ordem.
Ele se levanta, e ela, sem contestar, segurando sua bolsa no colo como se fosse um bebê dispensa sua mão esquerda para baixo a oferecendo para que ele a segure. Ele ignora o fato, finge que não viu e a mantém longe. A multidão os assiste sair. Ele, finalmente, tropeça e cai.